relatório
entrevistas
produção normativa
publicação
Projeto selecionado no edital do Fundo Brasil de direitos humanos no ano de 2012
seminário
relatório
Apresentação
O Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA-RJ) é uma organização que atua na defesa, promoção e controle social de direitos humanos de crianças e adolescentes na cidade do Rio de Janeiro. Atua, assim, seguindo as diretrizes e parâmetros estabelecidos tanto em nível nacional, como regional e internacional, com o objetivo de garantir observância aos direitos das milhares de meninas e meninos que vivem nesta capital e região metropolitana.
No Brasil, a política nacional voltada para crianças e adolescentes é chamada de Sistema de Garantia de Direitos (SGD). Este sistema serve de diretriz aos Estados e Municípios, para que à luz da política nacional possam desenhar, desenvolver e implementar as políticas locais de atenção à infância e juventude. A legislação nacional também regula, através de lei federal – o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) - e dispositivos constitucionais como deve ser desenvolvida a política de atenção às crianças e adolescentes e priorizam as atuações dos governos locais, desde que estas sejam condizentes com os dispositivos constitucionais e da lei federal.
A forma em que a política pública para crianças e adolescentes está organizada permite que as decisões sejam tomadas por um Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA). Este Conselho, de composição paritária, sendo a metade de seus membros representantes da esfera de governo local e a outra metade representantes de organizações da sociedade, determina qual a política deve ser adotada e como será realizada a distribuição dos Fundos Orçamentários para sua implementação.
Infelizmente, em muitos casos, o executivo municipal atropela este processo e se utiliza de mecanismos não democráticos para colocar em prática seus interesses. É o caso de atos exclusivos do Poder Executivo, como Decretos e Resoluções. Assim passou com a situação a ser tratada neste Relatório - A Resolução nº 20/2011 que determinou o recolhimento e a internação compulsória para crianças e adolescentes em situação de rua usuários (ou não) de drogas.
Com o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos, o CEDECA-RJ desenvolveu uma pesquisa que contém a produção normativa acerca do recolhimento e internação compulsória no município do Rio de Janeiro; opiniões de especialistas em diversas áreas do conhecimento relacionadas ao recolhimento e internação compulsória. O projeto de pesquisa previa, ainda, a elaboração de instrumentais para visitas aos abrigos onde essas crianças e adolescentes tem sido encaminhados e um documentário audiovisual sobre a situação, com depoimentos de diversos especialistas e, inclusive, dos principais envolvidos, as crianças e adolescentes em situação de rua. Embora tenham sido elaborados os instrumentais para a visita aos abrigos, a mesma foi inviabilizada pelas autoridades após terem sido veiculadas nos jornais denúncias graves de superfaturamento por parte da entidade que administrava os abrigos.
Notas Metodológicas
A metodologia adotada consistiu na elaboração de um projeto de pesquisa que possui dois objetivos principais: 1) Avaliar os efeitos da política de recolhimento e internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua e/ou usuários de crack na cidade do Rio de Janeiro, apontando as contradições e as violações de direitos dessa política, na perspectiva da proteção integral orientadora do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, por meio do monitoramento dos abrigos na cidade e de um vídeo-documentário; e 2) Promover um amplo debate público, envolvendo a sociedade civil, os diversos atores do sistema de garantia de direitos, a universidade e os próprios segmentos atingidos, no sentido de problematizar o consenso existente em torno da internação como solução e visibilizando outras abordagens e experiências.
Após a delimitação do objeto da pesquisa, consistente na avaliação da política de recolhimento e internação compulsória de crianças e adolescentes, ou seja, com idade até 18 anos de idade, vivendo em situação de rua, usuários ou não de drogas, passou-se a execução do projeto. A foi desenvolvida em duas fases, com a realização de atividades transversais para a coleta do material audiovisual. A primeira fase consistiu na elaboração de instrumentais de pesquisa, consistente em roteiros de entrevistas para orientar a coleta do material audiovisual e também das informações a serem obtidas na visita in loco aos abrigos para onde são levados os adolescentes que foram compulsoriamente recolhidos. Ainda nesta fase, foram realizadas reuniões com representantes de organizações não-governamentais, conselhos de classe (como os conselho regionais de psicologia e serviço social), representantes da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, entre outros, com a finalidade de articular esses espaços e envolvê-los na pesquisa através da elaboração de pareceres técnicos, divididos por cada área do conhecimento, como sendo do ponto de vista jurídico, do serviço social, da saúde, da comunicação e das políticas públicas. O CEDECA-RJ enviou ofícios para os órgãos competentes solicitando autorização para visitar os abrigos para onde os adolescentes são levados após uma operação de recolhimento compulsório. A equipe do projeto realizou um levantamento da produção normativa existente a respeito do tema, que inclui pareceres e posicionamentos de organizações e conselhos.
A segunda fase da pesquisa consistiu na sistematização dos dados coletados tanto em documentos escritos, quanto em imagens e nas articulações e logística para a preparação do Seminário que discutirá as violações de direitos humanos de crianças e adolescentes oriundos da política de recolhimento e internação compulsória no município do Rio de janeiro. Esta fase culmina na Consolidação do Relatório de Violações de Direitos de Crianças e Adolescentes no Âmbito da Política de Recolhimento e Internação Compulsória e na confecção do vídeo documentário, ambos lançados durante o Seminário.
Durante a realização da pesquisa, foi veiculado pela imprensa, um escândalo de suspeita de superfaturamento envolvendo a entidade executora de um convênio com a Prefeitura do Município do Rio de Janeiro. Devido a este fato superveniente, acabou por não ser possível realizar a visita in loco aos abrigos para onde as crianças e adolescentes são levados. Houve a necessidade, então, de se intensificar a pesquisa com maior detalhamento com relação aos documentos e fontes oriundas da imprensa e das visitas realizadas por outras organizações e conselhos, para que fosse possível completar e acomodar a questão dos abrigos. Passou-se, então a oficiar os órgãos públicos e a entidade conveniada para que forneçam as informações relativas às atividades. Estes pedidos foram formalmente enviados pelo CEDECA-RJ com fundamento na Lei de Acesso à Informação.
Introdução
Entre as práticas violadoras de direitos humanos que atingem a população em situação de rua está a realização das chamadas “operações de recolhimento”. Tais operações tem sido realizadas sistematicamente durante a última gestão do executivo municipal. Esta política de recolhimento conta com a participação da guarda municipal, polícias militar e civil e funcionários da Secretaria de Assistência Social. As informações disponíveis demonstram que em muitos casos estes atores agem com brutalidade, violam direitos fundamentais de pessoas que já se encontram em situação de vulnerabilidade extrema. Um segundo aspecto dessa política consiste na precarização e insuficiência de serviços da rede pública de atendimento (como centros para tratamento de dependentes de drogas, em especial o crack, abrigos e casas-dia para a implementação deste tratamento em casos em que se faz necessária a contenção de acordo com a política de saúde mental e na área da assistência social, entre outros) principalmente voltados para crianças e adolescentes, principalmente àquelas que se encontram vivendo em situação de rua.
É sabida e notória a deficiência existente no funcionamento do sistema judicial brasileiro. Tal situação se agrava quando se trata de grupos particularmente vulneráveis como crianças e adolescentes. Estes são re-vitimizados pelo sistema judicial, que reproduz na administração da justiça, a discriminação presente na sociedade, conforme constatado pelo Relator Especial da ONU sobre a independência dos magistrados e advogados, a saber:
(...)“dificuldades de acesso à justiça, lentidão e notória morosidade, escassa representação de mulheres, afrodescendentes e indígenas nos altos cargos da magistratura, certa tendência ao nepotismo (...). De todas, a mais grave é sem dúvida a primeira, na medida em que grande parte da população brasileira, por razões de ordem social, econômica, cultural ou de exclusão, se vê impedida de acessar a prestação judicial ou a recebe de maneira discriminatória. (...) Outro grande problema é a morosidade da Justiça, o que na prática afeta o direito a prestação jurisdicional, ou a torna ineficaz. Desta maneira as sentenças demoram anos para serem prolatadas, o que provoca incerteza tanto no âmbito como penal e, em muitos casos, gera impunidade”.
A população de crianças e adolescentes que vivem em situação de rua sofre violações de direitos humanos em todos os ambientes pelos quais passam. Além de viverem na miséria, privados de tudo e de todos os direitos, sob o risco constante de serem vítimas de políticas higienistas sob o disfarce de serem supostamente “para o melhor interesse da criança” e de serem vistos como a escória da sociedade, esses meninos e meninas ainda sofrem preconceito e violência.
Este relatório consiste em uma compilação de casos paradigmáticos, que ilustram violações de direitos humanos de crianças e adolescentes. Aborda a questão do recolhimento compulsório de crianças e adolescentes que vivem em situação de rua, mas não tem a pretensão de fazer uma análise quantitativa das situações de violência que envolvem as crianças e adolescentes cariocas. Trata-se, assim de uma análise qualitativa, elaborada através de uma amostra de casos e dados, obtida através de denúncias e encaminhamentos recebidos por organizações de direitos humanos parceiras que também trabalham este tema.
O Direito à liberdade e livre circulação
Vigora no Brasil a Doutrina da Proteção Integral, inspirada na Convenção Sobre os Direitos da Criança pela qual as crianças e adolescentes deixam de ser objetos de proteção e passam a ser considerados sujeitos de direitos, com vez e voz em seu processo de crescimento e desenvolvimento integral. A Constituição Federal de 1988, determina que todos são iguais perante a lei e que é garantida a inviolabilidade de direitos como o direito à liberdade.
Por intermédio desta garantia constitucional, tem-se que as crianças e os adolescentes do município do Rio de Janeiro não podem ser privados de qualquer parcela de sua liberdade individual. A política do recolhimento e internação compulsória, nos moldes em que tem sido implementada no município fere também, a própria idéia de livre circulação pública no território nacional, que inclui a assertiva de que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal e que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente. Além disso, a normativa constitucional garante às crianças e adolescentes o direito à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Deste modo, segundo tais dispositivos constitucionais, nenhuma criança ou adolescente pode ser privado de sua liberdade de locomoção no território nacional, a menos que seja flagrado cometendo ato infracional ou que, por conta da prática de ato infracional, tenha sua apreensão determinada por ordem judicial fundamentada e emanada em processo judicial regular.
Nesta mesma ordem de idéias, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) a lei infraconstitucional em matéria de criança e adolescente, garante a estes sujeitos de direitos o direito à liberdade, que consiste inclusive no direito de ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as restrições legais. A mesma norma, define em seu artigo 103 quais são estas restrições legais, que consistem basicamente nos atos infracionais e reforça em seu artigo 106, o direito das crianças e adolescentes à liberdade ao garantir que “nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente.”
Portanto, tendo a Portaria nº 20/2011 determinado o recolhimento de crianças e adolescentes independentemente da prática, por eles, de ato infracional, tal portaria, também por este ponto de análise, se mostra inconstitucional e ilegal. Além de afrontar o princípio da legalidade e o direito à livre locomoção, a portaria afronta o direito da criança e do adolescente não ter sua vida privada interferida arbitrariamente pelo Estado, direito esse expresso na Constituição Federal e na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (Decreto 99.710/90).
Recolhimento Compulsório de Crianças e Adolescentes em situação de rua na Cidade do Rio de Janeiro.
“A minha alma tá armada e apontada
Para cara do sossego!
Pois paz sem voz, paz sem voz
Não é paz, é medo!
As vezes eu falo com a vida, As vezes é ela quem diz:
"Qual a paz que eu não quero conservar,Prá tentar ser feliz?"
(Minha Alma (A Paz Que Eu Não Quero) O Rappa “My soul're armed and pointing
To face the rest!
Because peace voiceless, voiceless peace
It is not peace, it is fear!
Sometimes I talk about life,
Sometimes it she says:
"What peace I do not want to keep Practical to try to be happy? "
My Soul (The Peace That I Want)
The Rappa
A Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa publicou em dezembro de 2011 o Dossiê: “Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Brasil”. De acordo com este documento, a liberdade de ir e vir, assim como o acesso a espaços públicos e o direito à locomoção pela cidade do Rio de Janeiro tem sido ameaçada através da prática da chamada “faxina social” associadas à realização da Copa e dos Jogos Olímpicos. O caso mais notório e exemplar é o do chamado “Choque de Ordem” que opera, sobretudo contra a população com trajetória de rua no Rio de Janeiro.
“No Rio de Janeiro, a política municipal designada “Choque de Ordem”, em vigor desde o dia 5 de janeiro de 2009, tem tido por objetivo realizar operações de repressão a vendedores ambulantes, flanelinhas, moradores de rua, construções irregulares e publicidade não autorizada.
O termo convencionalmente utilizado pelo poder público para caracterizar as ações é “combate à desordem urbana”. Não seria exagero afirmar que os pobres e suas formas de existência à margem da formalidade têm sido os principais alvos. Violam-se assim o direito ao trabalho e à livre circulação.
Ao tratar toda essa gama de problemas estruturais resultantes da extrema desigualdade social como questão de “ordem pública”, o poder público evidencia que não enfrentará as reais causas para alterar a realidade. Ao contrário, opta pela adoção de uma política repressiva que criminaliza e penaliza ainda mais a pobreza. A lógica expressa nas ações e nas declarações das autoridades demonstra que a idéia de limpeza social e étnica volta à tona com o pretexto de promover ordem e segurança no espaço público ao custo da eliminação de todos os direitos dos mais pobres, nesse caso à moradia e, principalmente,
ao trabalho.
Apesar do “Choque de Ordem” ter uma abrangência de ação em todo o município do Rio, suas ações são, majoritariamente, concentradas em territórios nobres como Zona Sul, Barra da Tijuca, Recreio e Centro, áreas de maior concentração de riqueza desta cidade e palco privilegiado dos eventos e turismo ligados aos megaeventos Copa 2014 e Olimpíadas.” (Dossiê Megaeventos e violações de direitos humanos no Brasil, p. 69)
Complementarmente ao “Choque de Ordem”, foi editada a Resolução nº 20/2011 da Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro. Esta Resolução trata de dois procedimentos do Serviço Especializado em Abordagem Social para os quais chamamos especial atenção. Estes dois procedimentos consistem em 1) encaminhamento de crianças e adolescentes a uma unidade de acolhimento; e 2) impedimento de evasão. Através desta Resolução, institucionaliza-se a violação de direitos fundamentais de crianças e adolescentes, especialmente o direito à liberdade. A Resolução 20 determina aos agentes de abordagem social 1)“realizar o acompanhamento de forma prioritária, dos casos de crianças e adolescentes atendidos até o encaminhamento para a unidade de acolhimento”; e 2)”assumir a responsabilidade “pela proteção, guarda e cuidado, protegendo- os e impedindo-os da evasão”.
O encaminhamento das crianças e dos adolescentes abordados, no âmbito da política de atendimento à população em situação de rua, para entidades de acolhimento institucional é uma atribuição exclusiva do Poder Judiciário. A Legislação prevê que emergencialmente tal encaminhamento pode ser realizado pelos Conselhos Tutelares, ou qualquer cidadão, nos moldes do determinado pelo Estatuto dos Direitos da Criança e do Adolescente (ECA). Ademais, a medida protetiva de acolhimento institucional não consiste em uma medida de privação de liberdade, devendo ser executada de forma voluntária pela criança ou adolescente.
A Prefeitura do Rio de Janeiro foi condenada em três Ações Civis Públicas propostas no ano de 2002 pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro. Na primeira ação a Prefeitura foi condenada:
à manutenção de unidades públicas de saúde de cada área programática da cidade, de serviço especializado, em regime ambulatorial, para atendimento, tratamento e acompanhamento de crianças e adolescentes usuários de drogas, dotando-as de equipamentos e profissionais capacitados;
b) disponibilizar, no prazo de 90 dias, serviço de saúde especializado em regime de internação com o mínimo de 16 leitos, para desintoxicação e/ou tratamento de crianças e adolescentes dependentes de entorpecentes ou drogas afins, dotando o referido serviço de equipamentos e profissionais capacitados.
c) multa diária de R$ 10.000,00 por descumprimento da sentença.
Na segunda ação a Prefeitura foi condenada a promover programas de assistência integral à saúde e o acolhimento de crianças e adolescente em situação de rua (tratamento médico, matricula em escola, profissionalização…), inserir as famílias em programas de promoção e orientação; dotar os abrigos de condições estruturais de modo a atender as normas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente.
E na terceira ação a Prefeitura foi condenada a alocar em creches 10829 crianças que estão em filas de espera, até o mês de fevereiro de 2004 sob pena de multa diária ou matrícula em creches particulares a expensas do Município. A condenação do Município em suprir a demanda reprimida, prestando o serviço público de educação em creches e pré-escolas para toda e qualquer criança de zero a seis anos de idade em condição de igualdade, cujos pais desejem matriculá-las sob pena de multa diária.
Essas condenações tem sido utilizadas como justificativa para as operações de “faxina social” e de “limpeza urbana” realizadas pela Prefeitura do Rio de Janeiro nas operações de recolhimento compulsório. A Prefeitura afirma que a política busca cumprir a determinação do judiciário na condenação sofrida nas Ações Civis Públicas interpostas pelo Ministério Público, em especial a que determina o tratamento e a desintoxicação de crianças e adolescentes dependentes de entorpecentes. Contudo, essa política não passa de um disfarce que busca legitimar, sob o argumento da dependência química, a política higienista da Prefeitura. O norte desta política consiste em afastar dos olhos da população, das vistas dos turistas, a existência de uma situação social que está presente no Rio de Janeiro, a existência de pessoas morando na rua. Tanto é assim que qualquer política de tratamento e recuperação de dependência química deveria ser pautada pela Secretaria Municipal de Saúde e não pela Assistência social. É uma questão de especificidade, por mais que se trate de uma população com características tão peculiares. Mesmo que seja necessário que as políticas de atenção integral à criança e ao adolescente possuam organicidade e um entrelaçamento, ainda assim, a política de saúde deve ser tratada pela Secretaria de Saúde, mesmo que com interfaces com a assistência social.
A cidade do Rio de Janeiro vive um processo de preparação para a chegada de grandes eventos esportivos. Em 2014 a cidade será uma das cidades que sediará jogos da Copa do Mundo da FIFA e em 2016 a cidade receberá os Jogos Olímpicos. Além disto, durante este ano de 2012, a cidade do Rio de Janeiro sediou tanto a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável - a Rio +20, quanto a Cúpula dos Povos. Esses eventos, de amplitude mundial atraíram a presença de um sem número de pessoas para a cidade do Rio de Janeiro. Entre turistas, diplomatas, ecologistas e executivos, a existência de uma população de rua destoa do cenário que se pretendia mostrar. Neste contexto de excitação, segundo a visão da Prefeitura não existe lugar para a população de rua, fazendo-se necessário escondê-la em algum lugar, bem longe das vistas de todos. E para isso, todos os meios tem-se mostrado válidos.
As operações de recolhimento compulsório, realizadas pela Secretaria Municipal de Assistência Social têm-se mostrado extremamente violentas. Os agentes sociais que fazem a abordagem de rua com o auxílio de força policial (tanto da Polícia Militar quanto da Guarda Metropolitana) são truculentos e obrigam as crianças e adolescentes a entrarem em uma van (um carro da prefeitura identificado com o logo da SMAS). Neste momento, não é realizado nenhum registro das crianças e adolescentes recolhidos. Eles são encaminhados diretamente à Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) para a verificação da existência de Mandado de Busca e Apreensão (MBA) contra os adolescentes. Ao chegar à DPCA, aqueles que tem MBA pendente são encaminhados para o sistema de justiça juvenil. Aqueles que não possuem MBA pendente são identificados e levados para os abrigos para tratamento de dependência química.
A Prefeitura realizou um Convênio com uma Organização não Governamental que gerencia três abrigos para onde as crianças e adolescentes recolhidos são encaminhados. Tem sido denunciado publicamente que existem indícios de superfaturamento nos convênios entre a Prefeitura e a referida organização (Tesloo). Tais denúncias levaram o Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro, em 25 de outubro de 2012, a recomendar a não celebração de novos convênios e a não renovação do convênio existente entre a prefeitura e a ONG.
Além disso, tem sido veiculado na imprensa e questionado pela sociedade civil o fato de que o presidente da referida ONG, policial aposentado, tem sido investigado por envolvimento com as milícias no Rio de Janeiro e tem sido ainda investigado pela morte de 42 pessoas. Muito dessa problemática tem a ver com uma junção entre indícios de corrupção e superfaturamento entre a Prefeitura e a ONG. A sociedade civil carioca vem questionando o poder público com relação a essas práticas. Tanto se trata de uma política higienista, violenta e com fins a desaparecer com os pobres que moram nas ruas, que a Prefeitura, a qualquer preço (que segundo as denúncias, tem sido um preço ao redor de R$ 28mil por criança ou adolescente durante o ano de 2011), celebra convênios com uma organização presidida por uma pessoa de índole duvidosa, para se dizer o mínimo, com valores altíssimos, utilizando-se do aparato da segurança pública de maneira indevida, tudo para criar nas pessoas uma falsa impressão de “cidade segura” pela ausência de população de rua, com o objetivo único de limpar e preparar a cidade para os grandes eventos.
Diante deste quadro, diversas instituições e organizações da sociedade civil vêm se manifestando contrariamente a esta política. Esta contrariedade se dá por diversos motivos, que incluem divergências no âmbito jurídico, da psicologia, da assistência social e da saúde. Segundo os especialistas:
Conselho Regional de Psicologia (CRP-RJ):
“A abordagem e o tratamento dados às crianças e aos adolescentes que vivem em situação de risco desrespeitam a Constituição Federal e os direitos humanos. A gente não concorda com a maneira bruta com que vêm sendo feitos esses recolhimentos, com a presença de policiais e guardas municipais, levando essas crianças para abrigos onde ficam fechadas, sem acesso aos familiares. É possível fazer esse trabalho de forma mais humana. Como alternativa aos métodos adotados até agora os consultórios de ruas e centros de atenção psicossociais. Políticas a favor dessas crianças e de suas famílias e não contra. Falta política pública para atender crianças dependentes de drogas. Hoje, elas só contam o serviço da Secretaria de Assistência Social.” (Ana Carla Silva, psicóloga, Conselheira do CRP-RJ)
Rede Rio Criança
“A SMAS, sob o pretexto de salvaguardar a integridade física e a saúde de usuários ou não do crack, apreende, de forma humilhante e constrangedora, TODAS as crianças e adolescentes em situação de rua, que são levadas para a DELEGACIA onde tem seus dados levantados – um tipo de prática dos tempos da ditadura, que infringe os direitos civis previstos na Constituição Federal do Brasil (art. 5º LXI) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 106º). Os adolescentes em situação de rua e usuários de crack que tem mandado de busca são encaminhados ao sistema socioeducativo (DEGASE), permanecendo ‘presos’ sem que lhes seja garantido o direito a tratamento de sua saúde.”
Do ponto de Vista Jurídico
“Em uma democracia, todos têm direitos assegurados na Constituição e nas leis. Crianças e adolescentes, vivendo em lares ou em situação de rua, dependentes de drogas ou não, são sujeitos de direitos, devendo ser respeitados como cidadãos e não recolhidos como lixos humanos em “situação irregular”. O pânico criado em torno do crack serve de pretexto para a concretização do indisfarçável objetivo de “limpeza” das ruas, afastando-se das vistas “sensíveis” dos auto-intitulados “cidadãos de bem” e dos tão esperados turistas os “incômodos” miseráveis que, sem condições mínimas de sobrevivência, sem amparo, sem assistência, sem moradia, sem formação educacional, sem lazer, perambulam pelas ruas sem destino e encontram nas drogas – crack ou outras – um dos poucos alívios para suas privações e sofrimentos. (Maria Lucia Karam, Juíza aposentada)”
“(...) [N]ão pode o Poder Executivo, imbuído de ponto de vista repressivo, pretender realizar faxina social, mediante o recolhimento das crianças, como alhures já referi, de modo a que sejam crianças expurgados da sociedade. A solução não passa pela exclusão dos indivíduos, a consideração distorcida e dissociada da previsão constitucional. Ao contrário, impõe o respeito a sua condição de pessoas em desenvolvimento, mediante a previsão, garantia e execução de políticas públicas, que permitam a crianças e adolescentes o alcance de seus direitos”. (Siro Darlan, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro).
“Recolher e internar uma criança ou um jovem de maneira compulsória é inconstitucional. Compete aos responsáveis legais o exercício do pátrio poder, que só pode ser retirado desses pais mediante um processo legal” Wadih Damous, presidente da OAB-RJ.
Do ponto de vista da Saúde
“A demonização do crack e uma suposta epidemia que estaria se espalhando pelo Brasil tem progressivamente tomado conta da imprensa e dos discursos políticos (...) Assim, um imaginário social mais baseado em medo que em informações tem sido usado para justificar uma série de políticas polêmicas por parte do Estado no já questionável “combate ao crack”, normalmente amparado por forças repressivas. Desde o dia 30 de maio de 2011, a Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura do Rio de Janeiro tem colocado em prática o sistema de internação compulsória para crianças e adolescentes menores de idade e usuários de crack em situação de rua. Os jovens são internados em abrigos onde são forçados a receber tratamento psiquiátrico.” (Gabriela Moncau jornalista, Caros Amigos)
“De acordo com estudos sobre casos de dependência, o tratamento por internação voluntária não apresenta maior eficiência do que os realizados em ambulatórios, mas a imposição de cuidados traz efeitos negativos. “Na internação compulsória, as taxas de recaída podem chegar a 95 %”. “Todo uso de drogas pode trazer algum risco de vida, mas a internação compulsória é um dispositivo para ser usado quando existe um risco constatado de suicídio. A outra situação é quando existe um quadro mental associado do tipo psicose, seria quando a pessoa tem um julgamento falseado da realidade: se ela acha que está sendo perseguida por alienígenas ou se acredita que pode voar e resolve pular pela janela. Nessas situações de psicose ou risco de suicídio é quando poderíamos lançar mão de uma internação involuntária” Dartiu Xavier da Silveira, especialista em dependências e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).